quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Budas Ditosos - Martha Medeiros



Quando "A Casa dos Budas Ditosos" foi lançado, em 1999, li na imprensa que uma importante rede de supermercados havia vetado a venda dos livros em suas lojas em função do seu conteúdo pornográfico. Não sei se isso realmente chegou a acontecer, mas na época me pareceu uma estupidez sem tamanho. Pois agora, cinco anos depois de ter lido o livro, fui assistir no teatro a fenomenal Fernanda Torres no papel da baiana que narra suas façanhas sexuais, e chego à conclusão de que o texto de João Ubaldo (brilhantemente adaptado e dirigido por Domingos de Oliveira) não merecia mesmo ser vendido em gôndolas ao lado de extratos de tomate. Deveria, isso sim, ser distribuído em universidades, virar tese de mestrado. É filosofia pura.

Pureza, aliás, é algo que relaciono diretamente com o sexo. O que é sacanagem? É coisa totalmente diferente do que João Ubaldo descreve. Sacanagem é fazerem a gente acreditar que o casamento é a única fórmula viável de relação e que desejos fora de hora devem ser reprimidos. É nos induzirem a pensar que os bonitos e os jovens são os mais amados e que os que transam muito não são confiáveis. É difundir a idéia de que só há uma fórmula para ser feliz, a mesma para todos, e que os que escapam dela estão condenados à marginalidade. Ninguém nos conta que essas fórmulas muitas vezes dão errado, frustam as pessoas, são alienantes, e que poderíamos tentar outras alternativas menos convencionais.

Sexo não é sacanagem. Sexo é uma coisa natural e simples - só é ruim quando feito sem vontade. Sacanagem é outra coisa. É nos condicionarem a um amor cheio de regras e princípios, sem ter o direito à leveza e ao prazer que nos proporcionam as coisas escolhidas por nós mesmos (se você tiver a impressão que já leu isso em algum lugar, não se espante, já tratei do assunto em outra crônica que se chama justamente "Sacanagem", e que circula pela internet com título e autoria trocados).

Mas voltando aos Budas Ditosos: ao final do espetáculo, o público aplaudiu em pé por vários minutos, entusiasticamente. O que se está aplaudindo? A atuação de Fernanda? O texto que muitos consideram simplesmente engraçado? A possibilidade de catarse? Isso tudo e algo mais. A maioria da platéia aplaude a chance de ver todas as suas fantasias expostas sem precisar levá-las a cabo. Aplaude a versão abafada de si mesmo, aplaude uma liberação temporária, aplaude a vida que secretamente gostariam de ter, mas que, pô, não pega bem.

Tudo é possível de acontecer, mas nada é obrigatório que aconteça. Não precisamos fazer coisa alguma que nos perturbe, que nos violente. Mas já será um avanço se deixarmos de incentivar patrulhas e preconceitos retrógrados - basta o Bush ter sido reeleito. Não vamos cair na cilada de achar que uma coisa é literatura e teatro, outra é a vida. É tudo a mesma coisa. Levemos nosso aplauso para a rua, para a liberdade de expressão, para o respeito às escolhas alheias. Tem muita gente que aplaude o que é arte mas, em seu dia-a-dia, promove uma verdadeira caça às bruxas. Isso sim é que é obsceno.
Revista O Globo de 14 de novembro de 2004.

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