quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Prós e Contras da Ponderação - Martha Medeiros


Quando eu era menina, uma das músicas que mais tocava no rádio dizia: "Não confie em ninguém com mais de 30 anos". Foi gravada pelos irmãos Marcos e Paulo Sérgio Vale, que compuseram outros tantos sucessos.

Eu adorava essa música, porém ela me deixava apreensiva, já que eu não achava muita graça em ser criança, o mundo adulto é que me atraía, não via a hora de crescer.
Era uma má notícia descobrir que, ao atravessar a fronteira rumo à maturidade, eu deixaria de ser confiável.
Lembrei dessa música dia desses, quando conversava com uma amiga sobre as relações humanas e nossas escolhas. Fizemos um breve restrospecto da nossa vida até o presente momento e chegamos à conclusão de que estamos bem. Nosso currículo é composto por diversas tarefas bem feitas. Formamos nossas famílias, temos afetos que nos são sagrados, não chegamos até aqui em vão. Passamos dos 30 - na verdade, passamos dos 40 - e o balanço é positivo, as pessoas podem tranquilamente comprar nossos carros usados. Somos confiáveis. Confiáveis até demais.
Não somos dois ou três, somos muitos. Homens e mulheres que estão na meia-idade e que, ao refletir sobre sua trajetória, descobrem que agiram certo na maioria das vezes. Transformaram-se em cidadãos responsáveis, sensatos, zelosos de suas conquistas. Li uma frase num livro da Yasmina Reza que traduz exatamente o que nos acontece. "Quando deixamos de ser jovens, trocamos paixão por ponderação". Mas ela não abençoa essa troca: "É um crime".
Eu pondero, tu ponderas, nós ponderamos. Procuramos evitar aquilo que tumultuaria nosso morno e satisfatório bem-estar. Mantemos tudo como reza a cartilha. Mas se está tudo no seu devido lugar, por que tomamos tanto remédio para dormir, por que choramos no escuro do cinema, por que insistimos em ler manuais de auto-ajuda, por que às vezes nos falta ar embaixo do chuveiro?
Talvez porque a gente sinta um misto de culpa e inocência. Estamos agindo certo sem saber onde o certo nos levará, se para o céu ou para uma úlcera. existem dias - e só confessamos isso para o terapeuta ou para o melhor amigo - em que gostaríamos de sumir no mundo, deixar para trás todos os afetos que nos são sagrados, todo o nosso currículo de tarefas bem-feitas, e ficar à disposição do imponderável, dos impulsos, do incerto. Como ficávamos quando tínhamos bem menos idade que agora.
Creio que foi isso que Marcos e Paulo Sérgio Vale quiseram transmitir com sua música. Confiar em quem segue obstinadamente todas as regras pode ser seguro e pode não ser. Há alguma maluquice em quem jamais foge do asfalto, jamais improvisa outro caminho. Há algo de estranho em quem aceita ficar refém de tudo o que construiu. Há um não-sei-que ameaçador em quem é tão controlado, tão obediente, tão ponderado. Talvez não devêssemos mesmo confiar cegamente em quem abriu mão da paixão em troca da ponderação, pois uma pessoa capaz de uma atrocidade dessas consigo própria pode ser capaz de coisa muito pior. 
Martha Medeiros 
Revista O Globo, 12 de dezembro de 2004

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