quinta-feira, 16 de agosto de 2012
quarta-feira, 8 de agosto de 2012
Eu e a música
Música não pode ser apenas um barulho que acontece fora de você. Música é uma confirmação de quem você é, música e um encontro.
Perder a viagem - Martha Medeiros
Você pede ao patrão para sair mais cedo do trabalho, pega um ônibus lotado, vai para um consultório médico que fica no centro da cidade, gasta seus trocados, seu tempo e seu humor, e, ao chegar, esbaforido e atrasado, descobre através da secretária que sua hora, na verdade, está marcada para semana que vem. Sinto muito, você perdeu a viagem.
Todo mundo já passou por uma situação assim, de estar no lugar errado e na hora errada por pura distração. Acontecendo só de vez em quando, tudo bem, vai pra conta dos vacilos comuns a qualquer mortal. O problema é quando você se sente perdendo a viagem todos os dias. Todinhos. É o caso daqueles que ainda não entenderam o que estão fazendo aqui.
Estão perdendo a viagem aqueles que não se comprometem com nada: nem com um ofício, nem com um relacionamento, nem com as próprias opiniões. Estão sempre flanando, flutuando, pousando em sentimento nenhum, brigando por idéia nenhuma, jamais se responsabilizando pelo que fazem, pois nada fazem. Respirar já lhes é tarefa árdua e suficiente. E os dias passam, e eles passam, e nada fica registrado, nada que valha a pena lembrar.
Estão perdendo a viagem aqueles que, em vez de tratarem de viver, ficam patrulhando a existência alheia, decretando o que é certo e errado para os outros, não tolerando formas de vida que não sejam padronizadas, gastando suas bocas com fofocas, seus olhos com voyeurismo, sem dedicar o mesmo empenho e tempo para si mesmo.
Estão perdendo a viagem aqueles preguiçosos que levam semanas até dar um telefonema, que levam meses até concluir a leitura de um livro, que levam anos até decidir procurar um amigo. Pessoas que acham tudo cansativo, que acreditam que tudo pode esperar, que todos lhe perdoarão a ausência e o descaso.
Estão perdendo a viagem aqueles que não sabem de onde vieram nem tentam descobrir. Que não sabem para onde ir e nem tentam encontrar um caminho. Aqueles para quem a televisão pode tranqüilamente substituir as emoções.
Estão perdendo a viagem aqueles que se entregam de mão beijada às garras do tédio.
Prós e Contras da Ponderação - Martha Medeiros
Quando eu era menina, uma das músicas que mais tocava no rádio dizia: "Não confie em ninguém com mais de 30 anos". Foi gravada pelos irmãos Marcos e Paulo Sérgio Vale, que compuseram outros tantos sucessos.
Eu adorava essa música, porém ela me deixava apreensiva, já que eu não achava muita graça em ser criança, o mundo adulto é que me atraía, não via a hora de crescer.
Era uma má notícia descobrir que, ao atravessar a fronteira rumo à maturidade, eu deixaria de ser confiável.
Lembrei dessa música dia desses, quando conversava com uma amiga sobre as relações humanas e nossas escolhas. Fizemos um breve restrospecto da nossa vida até o presente momento e chegamos à conclusão de que estamos bem. Nosso currículo é composto por diversas tarefas bem feitas. Formamos nossas famílias, temos afetos que nos são sagrados, não chegamos até aqui em vão. Passamos dos 30 - na verdade, passamos dos 40 - e o balanço é positivo, as pessoas podem tranquilamente comprar nossos carros usados. Somos confiáveis. Confiáveis até demais.
Não somos dois ou três, somos muitos. Homens e mulheres que estão na meia-idade e que, ao refletir sobre sua trajetória, descobrem que agiram certo na maioria das vezes. Transformaram-se em cidadãos responsáveis, sensatos, zelosos de suas conquistas. Li uma frase num livro da Yasmina Reza que traduz exatamente o que nos acontece. "Quando deixamos de ser jovens, trocamos paixão por ponderação". Mas ela não abençoa essa troca: "É um crime".
Eu pondero, tu ponderas, nós ponderamos. Procuramos evitar aquilo que tumultuaria nosso morno e satisfatório bem-estar. Mantemos tudo como reza a cartilha. Mas se está tudo no seu devido lugar, por que tomamos tanto remédio para dormir, por que choramos no escuro do cinema, por que insistimos em ler manuais de auto-ajuda, por que às vezes nos falta ar embaixo do chuveiro?
Talvez porque a gente sinta um misto de culpa e inocência. Estamos agindo certo sem saber onde o certo nos levará, se para o céu ou para uma úlcera. existem dias - e só confessamos isso para o terapeuta ou para o melhor amigo - em que gostaríamos de sumir no mundo, deixar para trás todos os afetos que nos são sagrados, todo o nosso currículo de tarefas bem-feitas, e ficar à disposição do imponderável, dos impulsos, do incerto. Como ficávamos quando tínhamos bem menos idade que agora.
Creio que foi isso que Marcos e Paulo Sérgio Vale quiseram transmitir com sua música. Confiar em quem segue obstinadamente todas as regras pode ser seguro e pode não ser. Há alguma maluquice em quem jamais foge do asfalto, jamais improvisa outro caminho. Há algo de estranho em quem aceita ficar refém de tudo o que construiu. Há um não-sei-que ameaçador em quem é tão controlado, tão obediente, tão ponderado. Talvez não devêssemos mesmo confiar cegamente em quem abriu mão da paixão em troca da ponderação, pois uma pessoa capaz de uma atrocidade dessas consigo própria pode ser capaz de coisa muito pior.
Martha Medeiros
Revista O Globo, 12 de dezembro de 2004
Amizade sem trato- Martha Medeiros
Amizade não é só emaptia, é cultivo. Exige tempo, disposição. E o mais importante: o carinho não precisa - nem deve- vir acompanhado de um motivo.
Dei pra me emocionar cada vez que falo dos amigos. Deve ser a idade, dizem que a gente fica mais sentimental. Mas é fato: quando penso no que tenho de mais valioso, os amigos aparecem em pé de igualdade com o resto da família. E quando ouço pessoas dizendo que amigo, mas amigo meeeesmo, a gente só tem dois ou três, empino o peito e fico até meio besta de tanto orgulho: eu tenho muito mais do que dois ou três. São uma cambada. Não é privilégio meu, qualquer pessoa poderia ter tantos assim, mas quem se dedica?
Fulano é meu amigo, Sicrana é minha amiga. É nada. São conhecidos. Gente que cumprimentamos na rua, falamos rapidamente numa festa, de repente sabemos até de uma fofoca pesada sobre eles, mas amigos? Nem perto. Alguns até chegaram a ser, mas não são mais por absoluta falta de cuidado de ambas as partes.
Amizade não é só empatia, é cultivo. Exige tempo, disposição. E o mais importante: o carinho não precisa - nem deve - vir acompanhado de um motivo.
As pessoas se falam basicamente nos aniversários, no Natal ou para pedir um favor - tem que haver alguma razão prática ou festiva para fazer contato. Pois para saber a diferença entre um amigo ocasional e um amigo de verdade, basta tirar a razão de cena. Você não precisa de uma razão, basta sentir a falta da pessoa. E, estando juntos, tratarem-se bem.
Difícil exemplificar o que é tratar bem. Se são amigos mesmo, não precisam nem falar, podem caminhar lado a lado em silêncio. Não é preciso troca de elogios constantes, podem até pegar no pé um do outro, delicadamente. Não é preciso manifestações constantes de carinho, podem dizer verdades duras, às vezes elas são necessárias. Mas há sempre algo sublime no ar entre dois amigos de verdade. Talvez respeito seja a palavra. Afeto, certamente. Cumplicidade? Mais do que cumplicidade. Sintonia?
Acho que é amor.
Oh, céus! Santa pieguice, Batman! Amor? Esta lengalenga de novo?
Sério, só mesmo amando um amigo para permitir que ele se atire no seu sofá e chore todas as dores dele sem que você se incomode nem um pingo com isso. Só mesmo amando para você confiar a ele o seu próprio inferno. E para não invejarem as vitórias um do outro. Por amor, você empresta suas coisas, dá o seu tempo, é honesto nas suas respostas, cuida para não ofender, abraça causas que não são suas, entra numas roubadas, compreende alguns sumiços - mas liga quando o sumiço é exagerado. Tudo isso é amizade com trato. Se amigos assim entraram na sua vida, não deixe que sumam.
Porém, a maioria das pessoas não só deixa como contribui para que os amigos evaporem. Ignora os mecanismos de manutenção. Acha que amizade é algo que vem pronto e que é da sua natureza ser constante, sem precisar que a gente dê uma mãozinha. E aí um dia abrimos a mãozinha e não conseguimos contar nos dedos nem dois amigos pra valer. E ainda argumentamos que a solidão é um sintoma destes dias de hoje, tão emergenciais, tão individualistas. Nada disso. A solidão é apenas um sintoma do nosso descaso.
Revista O Globo, 10 de setembro de 2006
Achamos que sabemos - Martha Medeiros
Achar é o mais longe que podemos ir nesse universo repleto de segredos e sussurros, incompreensões, traumas, sombras, urgências
Outro dia assisti a um filme no DVD do qual nunca tinha ouvido falar – talvez porque nem chegou a passar nos cinemas. Chama-se Vida de Casado, um drama enxuto, com apenas 90 minutos de duração e jeito de clássico. Gostei bastante. Um homem casado há muitos anos se apaixona por uma bela garota e com ela quer viver, mas não sabe como terminar seu casamento sem que isso humilhe sua venerável esposa, então decide que é melhor matá-la para que ela não sofra: não é uma solução amorosa? Não tem o brilhantismo de um Woody Allen, mas o roteiro possui certo parentesco com Crimes e Pecados. Se fosse possível resumir o filme numa única frase, seria: “Ninguém sabe o que está se passando pela cabeça da pessoa que está dormindo ao nosso lado”.
Será que nós sabemos, de verdade, o que acontece à nossa volta? Achamos que sabemos.
Achamos que sabemos quais são as ambições de nossos filhos, o que eles planejam para suas vidas, esquecendo que a complexidade humana também é atributo dos que nasceram do nosso ventre, e que por mais íntimos e abertos que eles sejam conosco, jamais teremos noção exata de seus desejos mais secretos.
Achamos que sabemos o que o amor da nossa vida sente por nós, baseados em suas declarações afetuosas, seus olhares ternos, suas gentilezas intermináveis e sua permanência, mas isso diz tudo mesmo? Nem sempre temos conhecimento das carências mais profundas daquele que vive sob o nosso teto, e não porque ele esteja sonegando alguns de seus sentimentos, mas porque nem ele consegue explicar para si mesmo o que lhe dói e o que ainda lhe falta.
Achamos que sabemos quais são as melhores escolhas para nossa vida, e é verdade que alguma intuição temos mesmo, mas certeza, nenhuma. Achamos que sabemos como será envelhecer, como será ter consciência de que se está vivendo os últimos anos que nos restam, como será perder a rigidez e a saúde do corpo, achamos que sabemos como se deve enfrentar tudo isso, mas que susto levaremos quando chegar a hora.
Achamos que sabemos o que pensam as pessoas que conversam conosco e que até nos fazem confidências, aceitamos cada palavra dita e nos sentimos honrados pelas informações recebidas, sem levar em conta que muito do que está sendo dito pode ser da boca pra fora, uma encenação que pretende justamente mascarar a verdade, aquela verdade que só sobrevive no silêncio de cada um.
Achamos que sabemos decodificar sinais, perceber humores, adivinhar pensamentos, e às vezes acertamos, mas erramos tanto. Achamos que sabemos o que as pessoas pensam de nós. Achamos que sabemos amar, achamos que sabemos conviver e achamos que sabemos quem de fato somos, até que somos pegos de surpresa por nossas próprias reações.
Achar é o mais longe que podemos ir nesse universo repleto de segredos, sussurros, incompreensões, traumas, sombras, urgências, saudades, desordens emocionais, sentimentos velados, todas essas abstrações que não podemos tocar, pegar nem compreender com exatidão. Mas nos conforta achar que sabemos.
19/04/09
Achar é o mais longe que podemos ir nesse universo repleto de segredos, sussurros, incompreensões, traumas, sombras, urgências, saudades, desordens emocionais, sentimentos velados, todas essas abstrações que não podemos tocar, pegar nem compreender com exatidão. Mas nos conforta achar que sabemos.
19/04/09
Budas Ditosos - Martha Medeiros
Quando "A Casa dos Budas Ditosos" foi lançado, em 1999, li na imprensa que uma importante rede de supermercados havia vetado a venda dos livros em suas lojas em função do seu conteúdo pornográfico. Não sei se isso realmente chegou a acontecer, mas na época me pareceu uma estupidez sem tamanho. Pois agora, cinco anos depois de ter lido o livro, fui assistir no teatro a fenomenal Fernanda Torres no papel da baiana que narra suas façanhas sexuais, e chego à conclusão de que o texto de João Ubaldo (brilhantemente adaptado e dirigido por Domingos de Oliveira) não merecia mesmo ser vendido em gôndolas ao lado de extratos de tomate. Deveria, isso sim, ser distribuído em universidades, virar tese de mestrado. É filosofia pura.
Pureza, aliás, é algo que relaciono diretamente com o sexo. O que é sacanagem? É coisa totalmente diferente do que João Ubaldo descreve. Sacanagem é fazerem a gente acreditar que o casamento é a única fórmula viável de relação e que desejos fora de hora devem ser reprimidos. É nos induzirem a pensar que os bonitos e os jovens são os mais amados e que os que transam muito não são confiáveis. É difundir a idéia de que só há uma fórmula para ser feliz, a mesma para todos, e que os que escapam dela estão condenados à marginalidade. Ninguém nos conta que essas fórmulas muitas vezes dão errado, frustam as pessoas, são alienantes, e que poderíamos tentar outras alternativas menos convencionais.
Sexo não é sacanagem. Sexo é uma coisa natural e simples - só é ruim quando feito sem vontade. Sacanagem é outra coisa. É nos condicionarem a um amor cheio de regras e princípios, sem ter o direito à leveza e ao prazer que nos proporcionam as coisas escolhidas por nós mesmos (se você tiver a impressão que já leu isso em algum lugar, não se espante, já tratei do assunto em outra crônica que se chama justamente "Sacanagem", e que circula pela internet com título e autoria trocados).
Mas voltando aos Budas Ditosos: ao final do espetáculo, o público aplaudiu em pé por vários minutos, entusiasticamente. O que se está aplaudindo? A atuação de Fernanda? O texto que muitos consideram simplesmente engraçado? A possibilidade de catarse? Isso tudo e algo mais. A maioria da platéia aplaude a chance de ver todas as suas fantasias expostas sem precisar levá-las a cabo. Aplaude a versão abafada de si mesmo, aplaude uma liberação temporária, aplaude a vida que secretamente gostariam de ter, mas que, pô, não pega bem.
Tudo é possível de acontecer, mas nada é obrigatório que aconteça. Não precisamos fazer coisa alguma que nos perturbe, que nos violente. Mas já será um avanço se deixarmos de incentivar patrulhas e preconceitos retrógrados - basta o Bush ter sido reeleito. Não vamos cair na cilada de achar que uma coisa é literatura e teatro, outra é a vida. É tudo a mesma coisa. Levemos nosso aplauso para a rua, para a liberdade de expressão, para o respeito às escolhas alheias. Tem muita gente que aplaude o que é arte mas, em seu dia-a-dia, promove uma verdadeira caça às bruxas. Isso sim é que é obsceno.
Pureza, aliás, é algo que relaciono diretamente com o sexo. O que é sacanagem? É coisa totalmente diferente do que João Ubaldo descreve. Sacanagem é fazerem a gente acreditar que o casamento é a única fórmula viável de relação e que desejos fora de hora devem ser reprimidos. É nos induzirem a pensar que os bonitos e os jovens são os mais amados e que os que transam muito não são confiáveis. É difundir a idéia de que só há uma fórmula para ser feliz, a mesma para todos, e que os que escapam dela estão condenados à marginalidade. Ninguém nos conta que essas fórmulas muitas vezes dão errado, frustam as pessoas, são alienantes, e que poderíamos tentar outras alternativas menos convencionais.
Sexo não é sacanagem. Sexo é uma coisa natural e simples - só é ruim quando feito sem vontade. Sacanagem é outra coisa. É nos condicionarem a um amor cheio de regras e princípios, sem ter o direito à leveza e ao prazer que nos proporcionam as coisas escolhidas por nós mesmos (se você tiver a impressão que já leu isso em algum lugar, não se espante, já tratei do assunto em outra crônica que se chama justamente "Sacanagem", e que circula pela internet com título e autoria trocados).
Mas voltando aos Budas Ditosos: ao final do espetáculo, o público aplaudiu em pé por vários minutos, entusiasticamente. O que se está aplaudindo? A atuação de Fernanda? O texto que muitos consideram simplesmente engraçado? A possibilidade de catarse? Isso tudo e algo mais. A maioria da platéia aplaude a chance de ver todas as suas fantasias expostas sem precisar levá-las a cabo. Aplaude a versão abafada de si mesmo, aplaude uma liberação temporária, aplaude a vida que secretamente gostariam de ter, mas que, pô, não pega bem.
Tudo é possível de acontecer, mas nada é obrigatório que aconteça. Não precisamos fazer coisa alguma que nos perturbe, que nos violente. Mas já será um avanço se deixarmos de incentivar patrulhas e preconceitos retrógrados - basta o Bush ter sido reeleito. Não vamos cair na cilada de achar que uma coisa é literatura e teatro, outra é a vida. É tudo a mesma coisa. Levemos nosso aplauso para a rua, para a liberdade de expressão, para o respeito às escolhas alheias. Tem muita gente que aplaude o que é arte mas, em seu dia-a-dia, promove uma verdadeira caça às bruxas. Isso sim é que é obsceno.
Revista O Globo de 14 de novembro de 2004.
Porque sumi- Martha Medeiros
Sumi porque só faço besteira em sua presença, fico mudo quando deveria verbalizar, digo um absurdo atrás do outro quando melhor seria silenciar, faço brincadeiras de mau gosto e sofro antes, durante e depois de te encontrar. Sumi porque não há futuro e isso não é o mais difícil de lidar, pior é não ter presente e o passado ser mais fluido que o ar. Sumi porque não há o que se possa resgatar, meu sumiço é covarde mas atento, meio fajuto meio autêntico, sumi porque sumir é um jogo de paciência, ausentar-se é risco e sapiência, pareço desinteressado, mas sumi para estar para sempre do seu lado, a saudade fará mais por nós dois que nosso amor e sua desajeitada e irrefletida permanência.
Sentir-se amado- Martha Medeiros
O cara diz que te ama, então tá. Ele te ama. Sua mulher diz que te ama, então assunto encerrado. Você sabe que é amado porque lhe disseram isso, as três palavrinhas mágicas. Mas saber-se amado é uma coisa, sentir-se amado é outra, uma diferença de milhas, um espaço enorme para a angústia instalar-se. A demonstração de amor requer mais do que beijos, sexo e verbalização, apesar de não sonharmos com outra coisa: se o cara beija, transa e diz que me ama, tenha a santa paciência, vou querer que ele faça pacto de sangue também? Pactos. Acho que é isso. Não de sangue nem de nada que se possa ver e tocar. É um pacto silencioso que tem a força de manter as coisas enraizadas, um pacto de eternidade, mesmo que o destino um dia venha a dividir o caminho dos dois. Sentir-se amado é sentir que a pessoa tem interesse real na sua vida, que zela pela sua felicidade, que se preocupa quando as coisas não estão dando certo, que sugere caminhos para melhorar, que coloca-se a postos para ouvir suas dúvidas e que dá uma sacudida em você, caso você esteja delirando. "Não seja tão severa consigo mesma, relaxe um pouco. Vou te trazer um cálice de vinho". Sentir-se amado é ver que ela lembra de coisas que você contou dois anos atrás, é vê-la tentar reconciliar você com seu pai, é ver como ela fica triste quando você está triste e como sorri com delicadeza quando diz que você está fazendo uma tempestade em copo d´água. "Lembra que quando eu passei por isso você disse que eu estava dramatizando? Então, chegou sua vez de simplificar as coisas. Vem aqui, tira este sapato." Sentem-se amados aqueles que perdoam um ao outro e que não transformam a mágoa em munição na hora da discussão. Sente-se amado aquele que se sente aceito, que se sente bem-vindo, que se sente inteiro. Sente-se amado aquele que tem sua solidão respeitada, aquele que sabe que não existe assunto proibido, que tudo pode ser dito e compreendido. Sente-se amado quem se sente seguro para ser exatamente como é, sem inventar um personagem para a relação, pois personagem nenhum se sustenta muito tempo. Sente-se amado quem não ofega, mas suspira; quem não levanta a voz, mas fala; quem não concorda, mas escuta. Agora sente-se e escute: eu te amo não diz tudo.
The Guitar man - Martha Medeiros
Eu fui criada ouvindo Beatles, Janis Joplin, Rita Lee, Lou Reed e Tina Turner, era minha trilha sonora da infância, o que não impediu que uma aguazinha com açúcarentrasse no meu repertório. Aos onze anos de idade, minha música preferida era "The Guitar Man", de um grupo chamado Bread, que não chegou a entrar para a história,a não ser pra minha.
Era uma balada bonita, que falava de um músico que estava sempre na estrada mexendo com as emoções daqueles com quem cruzava. " Who draws the crowd andplays só loud, baby, ifs theguitar man..." e foi o que bastou para esse personagem virar meu príncipe encantado, muito mais do que aqueles loiros em cavalos brancos que entravam mudos e saíam calados dos contos de fada, sempre com ar de sonsos.
Adoro bossa nova, sou louca por jazz, este ano curti com alegria Norah Jones, Jorge Drexler, John Pizzarelli, Madeleine Peyroux, mas nada se compara ao poder eletrizante de um guitarrista clássico, e estou falando logicamente da lenda que acabou de se apresentar no Brasil, Buddy Guy, que não tem nada de cool, e sim de incendiário.
Nessas horas minha sofisticação vai pró ralo e eu quero mais é... é... sei lá, devo ter sido uma stripper em outra encarnação.
Assisti ao espetáculo do rei do blues em Porto Alegre, onde ele transformou o teatro num estádio de futebol. Foi eletrizante, celebrou-se o lado mais quente da vida.
Assisti ao espetáculo do rei do blues em Porto Alegre, onde ele transformou o teatro num estádio de futebol. Foi eletrizante, celebrou-se o lado mais quente da vida.
Os integrantes da banda lidavam com os instrumentos como se eles fossem extensão do próprio corpo, e Buddy, do alto dos seus 69 anos, mostrou que idade é um conceito muito relativo e que tem muito garoto de vinte que precisa de umas liçõezinhas sobre o que é vigor.
A maioria dos gêneros musicais provocam arrepios na alma e no coração, são absorvidos pelos ouvidos e se instalam dentro da gente de forma tranqüila e apaziguadora.
O blues e o rock, primos-irmãos, não se assentam assim tão facilmente dentro de nós. Eles são assimilados através da pele também, nos reviram, impulsionam, provocam reações físicas mais nervosas, despertam em nós o tarado, o revolucionário, o selvagem, o herege. Já ia esquecendo: a stripper.
Guitarra, bateria, piano, sax, gogó e veneno, tudo misturado, cativam pelo que têm de vibrante e sexy. Já virou clichê dizer que o rock é mais atitude do que música, e se formos ampliar isso para a vida fora do palco, podemos dizer que Elis Regina, por exemplo, foi uma grande roqueira, assim como o jornalista Paulo Francis, que também tinha uma postura muito rock'n'roll, mesmo considerando rock música de jeca e sendo o rei dos eruditos.
O show de Buddy Guy foi, antes de tudo, um workshop: ele saiu do palco várias vezes, circulou por todos os ambientes, misturou-se à platéia, desarrumou-a, seduziu-a, quebrou o protocolo, divertiu e divertiu-se sem parar um único segundo de tocar - e ainda se deu ao luxo de homenagear John Lee Hooker, Jimi Hendrix e Eric Clapton, sem deixar de ser ele mesmo, dono e senhor do seu blues. Por que tudo isso faz bem? Porque o cotidiano anda muito monocórdico, as notícias andam muito repetitivas e a natureza pulsante da gente, pouco provocada. bom lembrar que podemos ser viscerais sem nos rendermos à vulgaridade, ser lascivos através do blues e suas guitarras, e ficarmos excitados sem perder a classe.
Revista O Globo- 4 de dezembro de 2005
Martha Medeiros
Martha Medeiros
Direita ou Esquerda - Paulo Coelho
Chego a Santiago de Compostela, desta vez de carro, para celebrar minha peregrinação há 20 anos
Chego a Santiago de Compostela, desta vez de carro, para celebrar minha peregrinação há 20 anos. Quando estava em Puente La Reina, veio a ideia de fazer tardes de autógrafos sem grandes preparações: bastava telefonar para a próxima cidade onde deveríamos dormir, pedir que colocassem um cartaz na livraria local, e estaria ali na hora marcada.
Funcionou magnificamente nas pequenas aldeias, embora exigindo um pouco mais de organização em grandes cidades, como a própria Santiago de Compostela. Tive um contato inesperado com os leitores, e aprendi que coisas feitas com amor podem ter o improviso como um grande aliado.
Santiago estava agora diante de mim. E algumas dezenas de quilômetros mais adiante, o Oceano Atlântico. Mas estou decidido a seguir adiante com as tais tardes de autógrafos improvisadas, já que pretendo ficar 90 dias fora de casa.
E como não pretendo atravessar o oceano neste momento, devo ir para a direita (Santander, País Basco) ou esquerda (Guimarães, Portugal)?
Melhor deixar que o destino escolha: minha mulher e eu entramos em um bar, e perguntamos a um homem que está tomando um café: direita ou esquerda? Ele diz com convicção que devemos seguir à esquerda - talvez pensando que nos referíamos a partidos políticos.
Telefono para o meu editor português. Ele não pergunta que loucura é essa, não reclama de avisá-lo em cima da hora. Duas horas mais tarde me chama, diz que contatou as rádios locais de Guimarães e Fátima, e em 24 horas posso estar com meus leitores naquelas cidades.
Tudo dá certo.
E em Fátima, como um sinal, recebo um presente de uma das pessoas que estão ali. Trata-se dos escritos de um monge budista, Thich Nhat Hanh, intitulado The Long Road to Joy (A Longa Estrada para a Alegria). A partir daquele momento, antes de continuar essa jornada de 90 dias pelo mundo, passo a ler todas as manhãs as sábias palavras de Nhat Hanh, que resumo a seguir:
1) Você já chegou. Portanto, sinta o prazer em cada passo, e não fique preocupado com as coisas que ainda tem de superar. Não temos nada diante de nós, apenas um caminho para ser percorrido a cada momento com alegria. Quando praticamos a meditação peregrina, estamos sempre chegando, nosso lar é o momento atual, e nada mais.
2) Por causa disso, sorria sempre enquanto andar. Mesmo que tiver que forçar um pouco, e achar-se ridículo. Acostume-se a sorrir, e terminará alegre. Não tenha medo de mostrar seu contentamento.
3) Se pensa que paz e felicidade estão sempre adiante, jamais conseguirá atingi-las. Procure entender que ambas são suas companheiras de viagem.
4) Quando anda, está massageando e honrando a terra. Da mesma maneira, a terra está procurando ajudá-lo a equilibrar seu organismo e sua mente. Entenda esta relação, e procure respeitá-la - que seus passos sejam dados com a firmeza de um leão, a elegância de um tigre, a dignidade de um imperador.
5) Preste atenção ao que acontece a sua volta. E concentre-se em sua respiração - isso o ajudará a libertar-se dos problemas e das ansiedades que tentam acompanhá-lo em seu caminho.
6) Ao caminhar, não é apenas você que está se movendo, mas todas as gerações passadas e futuras. No mundo chamado de real o tempo é uma medida, mas no verdadeiro mundo não existe nada além do momento presente. Tenha plena consciência de que tudo que já aconteceu e tudo o que acontecerá está em cada passo seu.
7) Divirta-se. Faça da meditação peregrina um constante encontro consigo mesmo; jamais uma penitência em busca de recompensas. Que sempre cresçam flores e frutas nos lugares onde seus pés tocaram.
Revista O Globo 21 de maio de 2006.
Revista O Globo 21 de maio de 2006.
O Amor Adestrado - Alberto Goldin
"TENHO 22 ANOS E NAMORO A MESMA GAROTA desde os 15. Começamos bem devagar e construímos aos poucos uma relação mais sólida. Todavia, passamos por diversos problemas familiares, financeiros, mentiras bobas que ela dizia. Sempre tivemos um bom diálogo, e isso nos permitiu ficar juntos todo esse tempo. Acontece que determinado dia eu percebi que estava completamente cansado dessa relação. Tinha me tornado uma pessoa estressada, de pouca paciência e a calvície estava chegando. Resolvi então dar um tempo para me revigorar, repensar minha vida, quando ela iniciou a conversa que causou nossa separação. Tem sido muito difícil suportar essa separação porque eu tinha planos grandiosos para nós. Por outro lado, sei que sou jovem e existem outros caminhos a percorrer. Conheço os métodos para voltar para ela, e os métodos para afastá-la de vez da minha vida. O problema é que meu coração virou um cachorro treinado, e sua falta de naturalidade, instinto, seu impulso que afasta a razão têm feito muita falta. Estou tomando tranqüilizantes. Preciso de ajuda. AGOSTINHO, Rio de Janeiro, RJ "
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ERAM JOVENS E SE AMAVAM. NUM CERTO DIA SEM aviso prévio deixaram de se amar, o tempo os tinha enferrujado, as pratas tinham perdido seu brilho e os olhares inquietos foram se apagando. Por quê? As teorias se acumulam sobre a escrivaninha: desejo de mudança, procura por novidades, falta de projetos. Os amores são projetos, plantas de prédios que precisam se transformar em colunas, tijolos e concreto, senão evaporam. O amor tem tempo de validade e só sua transformação o renova. Às vezes, uma separação, principalmente quando é dolorosa, torna o parceiro ausente tão presente, que o amor, já renovado, impõe-se novamente. A separação é a prova dos nove e a prova de coragem que todo amor merece. Não há bons amores sem arrependimento: não deveria continuar ou não deveria parar, isso sem contar os que se arrependem amargamente de terem se arrependido. Tudo funciona em círculos inexoráveis que levam a questão ao seu ponto de partida, que é a solidão. E o mais notável é que essa mesma solidão é o motivo pelo qual deixamos de amar. Agostinho levanta uma questão relevante: seu coração é um cachorro adestrado, decorou o código dos procedimentos afetivos. Sabe o que deveria fazer, tem as palavras certas para seguir ou terminar e o que espera é um sinal instintivo para se orientar, uma prova genuína e irracional que o dirija neste momento tão difícil, uma verdade mais certeira, não contaminada pela razão, e que mostre de uma forma clara e eficaz a saída ou a entrada na relação. Acredito que o entendo e temo que minhas palavras o deixem ainda mais perplexo. Tem que tomar uma decisão e terá que arcar com suas conseqüências. O inconsciente é mesquinho, não entrega as suas chaves. A vida, assim como o destino, constitui-se de decisões que só serão certas ou erradas quando o futuro der o seu veredicto.
Se estiver infeliz, deve mudar e, se continuar infeliz, então deve mudar novamente. Uma palavra de consolo, Agostinho sente-se culpado por tomar decisões puramente racionais, por filtrar seus afetos, para ele isso não é amor. Da minha parte considero que sua preocupação é exagerada. A razão, ainda que tenha a aparência de estar cheia de lógica e argumentos, não é mais razoável que o afeto. A pura racionalidade é tão louca e perigosa como a afetividade pura. Por isso, a única solução possível é amar e pensar simultaneamente. Amar muito e pensar ainda mais. A respeito de sua preocupação de estar agindo como cachorro adestrado, devo informá-lo que não é o único, todos somos, com o agravante de que o adestrador não terminou sua obra. Por isso, nos momentos decisivos, quando estamos impacientes e desesperados, agimos como os verdadeiros cachorros adestrados, procuramos pessoas cegas de boa vontade que nos digam para onde ir.
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Alberto Goldin - Revista O Globo 04 de dezembro de 2005.
Diferença de necessidades (Martha Medeiros)
Tudo pode dar certo e tudo pode dar errado, e a idade nada tem a ver com isso. O que transforma a vida amorosa em melodrama é a diferença de necessidades.
Um quer se sentir o centro do universo, o outro quer incluí-lo no sue amplo universo. Um quer fugir da solidão, o outro aceita a solidão. Um não quer falar de suas dores, o outro pergunta demais. Um briga por amor, o outro silencia por amor. Os dois se amam, isso não se discute.
“Procedíamos de galáxias diferentes, como dois cometas que se cruzam efemeramente no espaço. Ele vinha da infância e nunca tivera uma parceira estável, queria me viver até me esgotar, queria que montássemos juntos uma casa, que sonhássemos um futuro, que nos enchêssemos de compromissos de eternidade até as orelhas. Eu, provinha da fatigante travessia da idade madura, sabia que a eternidade sempre se acaba, e tanto mais cedo quanto mais eterna. E assim fui avarenta, me neguei a ele, afastei-o de mim. Quanto mais ele me exigia, mais em sentia asfixiada; e, quanto mais me regateava, mais ansiosamente ele queria me segurar. Dito isso, se ele se retirava, eu avançava, e então o perseguia e o exigia: porque o amor é um jogo perverso de vasos comunicantes.”
Gastei bom pedaço da coluna transcrevendo esse parágrafo di excelente livro “A filha do canibal”, da espanhola Rosa Montero, pois eu não saberia descrever melhor a razão de tantos desencontros amorosos. O relato refere-se a um homem e uma mulher com alguma diferença de idade – ela é a mais velha, lógico, como tem se tornado comum hoje em dia. Muitas pessoas duvidam que uma relação assim possa dar certo. Claro que pode. Tudo pode dar certo e tudo pode dar errado, e a idade nada tem a ver com isso, é apenas um detalhe na certidão de nascimento. O que transforma nossa vida amorosa num melodrama é a diferença de necessidades. Aí não há casal que encontre seu ponto de apoio, seu eixo e seu futuro.
Um quer compromisso sério; para o outro, amar já é sério o suficiente. Um quer filhos, o outro nem em sonhos. Um quer uma casinha no meio do mato, o outro é curioso, precisa de informação, cinema, teatro, gente. Um valoriza a transa antes de tudo, o outro acha que conversar é importante também. Ao menos, os dois gostam de dançar.
Um não precisa conhecer o mundo, o outro traz o mundo em si. Um é romântico para disfarçar a brutalidade, o outro é doce para despistar a secura. Um quer muito de tudo, o outro se contenta com o mínimo essencial. Nenhum dos dois liga pra dinheiro, mas o dinheiro quase sempre está no bolso de quem viveu mais. Um fica inseguro, o outro diz que nada disso importa, mas claro que importa.
Um quer que lhe dêem atenção 24 horas, o outro precisa que o esqueçam por uns instantes. Um quer aproveitar cada réstia de sol, o outro gostaria de dormir um pouco mais. Um gostaria de saber o que não sabe, o outro queria desaprender metade do que a vida lhe ensinou. Um precisa berrar, o outro chora. Um quer ir embora e, ao mesmo tempo, não. O outro quer liberdade, mas a dois. Então um se vai e deita em todas as camas, sofrendo. E o outro mergulha sozinho na dor, sobrevivendo.
Diferença de idade não existe. A necessidade secreta de cada um é que destrói ilusões e constrói o que está por vir.
Martha Medeiros/ Revista O Globo 4 de maio de 2008.
Paolo Nutini - Last Request - Legendado - CC
Paolo Nutini foi minha grande descoberta no ano de 2009 e com certeza essa música foi a que me conquistou de primeira. Paolo tem um timbre de voz super diferente e um estilo também vale a pena conferir seu repertorio.
Clique na legenda do vídeo
NSync - Something like you - Tradução
Something Like You
So many times
I thought I held it in my hands
But just like grains of sand
Love slipped through my fingers
So many nights
I asked the Lord above
Please make me lucky enough
To find a love that lingers
Something keeps telling me
You could be my answer prayer
You must be heaven sent
I swear
(Chorus)
Cause something happens when you look at me
I forget to speak
Something happens when you kiss my mouth
My knees get so weak
Could it be true this is what God has meant for me
Cause baby I can't believe something like you
Could happen to me
Girl in your eyes
I feel your fire burn (feel your fire)
All your secrets I will learn
Even if it takes forever
With you by my side
I can do anything(can't do anything)
I don't care what tommorrow brings
As long as we're together
My heart is telling me
That you could be my meant to be
I know it more each time
We touch
(Chorus)
Something magical(something magical)
Something spitual(something spitual)
Something stronger than the two of us alone( yea)
Something physical
Something undeniable
Nothing like anything(nothing like anything)
That I've ever known
(Chorus)
{fades out}
Gentil Demais
"Sou gentil simplesmente porque acho mais fácil do que ser grosseira. Dispende menos energia. O que ninguém me ensinou é que gentileza demais pode, por incrível que pareça, ser um defeito, e dos graves"
Recebi um livro chamado A arte de ser gentil, com o dispensável subtítulo A bondade como chave para o sucesso, que, a meu ver, descredibiliza um pouco o autor, o sueco Stefan Einhorn, já que ser gentil deveria ser uma atitude para facilitar as relações humanas, e não uma meta para o sucesso. Que sucesso, o quê. Agora tudo o que a gente faz tem que visar o sucesso?
O texto da contracapa diz que uma pessoa gentil terá mais oportunidades de se tornar feliz, rica, bem-sucedida e realizada, e que o livro fornecerá soluções imediatas e de longo prazo para os interessados em se tornarem seres humanos melhores. Foi tudo que li até agora, a contracapa, e não vou adiante. Primeiro, porque tenho uma pilha de outros livros me aguardando, e em segundo lugar, porque já sou gentil. Nem sabia que sendo gentil eu poderia ficar rica, feliz, bemsucedida e essa coisa toda. Sou gentil simplesmente porque acho mais fácil do que ser grosseira. Despende menos energia. E também porque não vejo graça em magoar as pessoas. Até aí, estou no padrão. O que ninguém nos ensina é que gentileza demais pode, por incrível que pareça, também ser um defeito, e dos graves.
Óbvio que não se deve ser rude com amigos, parentes, colegas de trabalho, vizinhos, comerciários, mas ser exageradamente gentil com todo mundo pode colocar a nossa vida em risco. Por exemplo: o que você faz se, ao chamar o elevador de um prédio estranho, à noite, a porta se abrir e lá dentro estiver um sósia do Curinga, com uma cicatriz perturbadora na face e vestindo um sobretudo enorme que poderia muito bem esconder duas pistolas, três granadas e um rifle? Você certamente teria uma vontade súbita de descer pela escada e sumiria de vista. Pois eu entraria no elevador toda faceira, daria boa noite e faria comentários sobre o clima, pois deus que me livre de ele achar que eu sou preconceituosa e que sua aparência me fez pensar que ele pudesse ser um esquartejador de mulheres. Por que ele não pode ser um pai de família como outro qualquer?
Se eu pego um táxi e o motorista demonstra não ter o menor senso de direção, arranha marchas, não usa o piscapisca e tira um fino dos outros carros, eu é que não vou mandá-lo de volta para a autoescola. Se ele correr a 200km/h, tampouco solto os cachorros, vá saber o dia horroroso que ele está descontando no acelerador, coitado. Neste caso eu simplesmente “me lembro” de que o endereço onde pretendo ir fica na próxima esquina, e não três bairros adiante, e saio pedindo desculpas pelo meu equívoco.
Se um garçom se aproximar perigosamente de mim com uma panela cheia de óleo fervente, eu não dou um pio, imagina se vou pedir para ele se afastar. Ele vai me considerar uma elitista estúpida – não basta ter pedido um fondue caríssimo, ainda vou ser grossa? Nada disso, uma queimadura no braço não mata ninguém. E se eu estou caminhando por uma rua escura e, na direção contrária, vem um adolescente com um gorro enterrado até o nariz e as duas mãos enfiadas numa jaqueta, eu começo a rezar, mas não troco de calçada, imagina o trauma que posso causar no menino: vai ver é até um amigo da minha filha.
Se você tem mais de nove anos de idade, já sabe reconhecer uma ironia e entendeu meu recado: seja gentil, mas não a ponto de perder o tino. Se tiver que ferir suscetibilidades para salvar sua pele, paciência. Atravesse a rua. Desça pela escada. Dê no pé. Sucesso é chegar em casa com vida.
Martha Medeiros/ Revista O Globo 17 de agosto de 2008
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